segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

O actor e o esqueleto


As palavras inscritas no Osso
(é assim que deve ser).
O músculo diz a parte interior, isto é: a alma.
O músculo diz a alma da palavras, enquanto a parte menor
são as letras aparecidas como a surpresa sonora da voz.
Quase nada, portanto.
Porque o músculo é mais importante; e o osso é mais importante.
E o texto para o actor é bengala: a vara de madeira que suporta o coração.
Enquanto o coração, esse, é a parte alta do actor;
a torre de onde se pode ver Deus e os homens.
(E não se deve confundir a bengala com a perna).
Porque a palavra ajuda-nos a não cair
e o coração ajuda-nos a subir. É diferente.
E entre o cair e sujar-se (a terra)
e o subir e salvar-se (o céu)
existe o esqueleto do actor: a linguagem da morte (os ossos)
tapada pelo tecido da vida: a pele.
Porque o texto da peça foi encontrado no osso; no seu centro.
E o coração do actor é sangue, quase tudo, palavras e movimento
(e é assim que deve ser).

(...)

Sejamos claros: o texto tem (pode não ter, mas normalmente tem), o texto tem : ; . ,
o texto tem: pontuação.
E a pontuação não é para ler, isto é, não é para ser dita.
A pontuação é para ser respirada.
A pontuação deve entrar no corpo em forma de oxigénio, e sair breve em CO2.
A pontuação do escritor, que é basicamente tinta ou caracter na máquina,
é no actor coisa viva: Oxigénio ou CO2.
Mas o facto é um, e inegável:
se todo o texto se diz, toda a pontuação se cala.

Porque não é nas letras que a pontuação se exibe, mas na voz.
Porque a voz pode, por exemplo, tremer, e é pontuação.
E a voz pode, por exemplo, saltar, e é pontuação.
E a voz pode, por exemplo, sofrer, amar ou torturar, e é ainda, essa voz, apenas pontuação.
A pontuação é voz e respiração, mas é também o modo como a pele se ilumina ou não.

Ou seja: se há no texto ponto de exclamação, no palco deverá existir exclamação ainda, mas na pele. Coisa difícil.
Porque os actores devem despir-se sem tirar a roupa, e devem dizer aos espectadores, sem abrirem a boca:
- Vejam, este é o ponto de exclamação que o autor queria, aqui mesmo, nesta parte do texto.
E é nesse momento que o actor seguro, o actor sagrado, deverá apontar o coração.
E a frase: É aqui, nesta parte do texto, significará para o actor: é aqui, nesta parte do corpo.

Toda a pontuação deve, pois, ser dita primeiro no coração.

E este orgão, como se leu nos manuais da escola, tem ventrículos (2) e alguma tecnologia. É deixar, então, a estes ventrículos (2) a responsabilidade primeira do quotidiano transporte do sangue e do excepcional transporte da pontuação;
e esperar depois que a cada músculo, a cada osso, e a cada molécula, chegue este carregamento afectivo, sanguíneo e poético.
É necessário, então, ser objectivamente biológico e dizer:
a pontuação do texto habita os glóbulos brancos e vermelhos do actor.
E se a autópsia final não o revelar: é porque alguém se enganou no percurso.

(...)

O teatro é (deve ser) o que seja capaz de fazer o espectador pedir:
- Dê-me um bilhete para mudar de vida.
O teatro é, deve ser: 1 bilhete para mudar a vida.


"Alguns dólares sobre teatro e outras notas menores" – fragmento (Gonçalo M. Tavares)

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