terça-feira, 24 de junho de 2008

Uma casa na escuridão (excerto)

Nunca fui tão feliz como durante essas noites. Fechava os olhos e via-a dentro de mim. A mulher mais bonita do mundo. E ia conhecendo mais do seu rosto, ia conhecendo mais do seu olhar que me via e que brilhava. Ficávamos durante horas só a olharmos um para o outro. Às vezes, fechava os olhos para a ver quando era de noite. Depois, havia uma luz que começava lentamente a atravessar-me as pálpebras. Abria os olhos, e era já de dia.
Naquelas horas, conhecemo-nos. Eu via uma mulher que me olhava: os seus olhos atentos a cada brilho com que os meus olhos interiores lhe diziam que qualquer coisa na beleza ou no mundo me conduzia para ela.
Naquelas horas, sem falarmos, construíram-se certezas dentro de nós. Ainda hoje o não sei explicar. A beleza, como o amor, são mistérios proibidos.
Naquelas horas, a beleza e o amor eram simples. Nos nossos olhares, abriam-se caminhos para a beleza e para o amor. Eu olhava para ela no mesmo momento em que ela olhava para mim. Esse era o mistério, o milagre, o labirinto simples que usámos para nos conhecermos e para dizermos palavras de silêncio: palavras maiores, profundas, abismos, palavras que eram de sangue e que ali, eu um rapaz, ela uma rapariga, pareciam palavras de sol terno, e de sol suave, e de sol brando. Sei hoje que, durante aquele tempo, amava e era amado.
Durante aquele tempo, a beleza da mulher de luz que estava dentro de mim, tinha-se misturado com esse sentimento. Esse sentimento. Esse sentimento que era um entusiasmo a mandar em todos os meus instantes, uma febre de onde não conseguia sair mesmo que quisesse, esse sentimento que era uma palavra: amor: uma palavra estranha porque era importante, eu achava que era uma palavra importante, mas sabia que era uma palavra que eu, desde os meus dezasseis anos, tinha tornado vulgar. Esse sentimento que era uma palavra, e eu perguntava-me a mim próprio sobre quantas pessoas a teriam tornado vulgar.
Eu sentia que sentia totalmente esse sentimento. Amava e era amado.
in Uma Casa na Escuridão, José Luís Peixoto

quarta-feira, 11 de junho de 2008

BARCO ILUSÓRIO






Preparei o barco da ilusão e naveguei rumo ao interior do ser, escondido por detrás do vulto que o suporta diariamente.

Naveguei por mares escuros e irrequietos devido ao vento cortante que se fazia sentir. Ele chocava na minha face como vidro já esmigalhado. Eu ali, só, isenta de dor, carregada pela única e já pesada bagagem, o meu corpo. Gostava de ter levado o meu pensamento. E talvez o tenha levado. Que pena ter esquecido a lógica, aí sim, o meu pensamento estaria presente de certeza, fruto do conhecimento. Mas, não seria a lógica o ponto final deste sonho, desta ilusão?
Talvez tenha pensado nisso quando embarquei no barco da ilusão, talvez... Pensamento sim, não fruto do conhecimento, mas fruto da mais perfeita harmonia que uniu dois seres que habitam diferentes esferas: a exterior e a interior do ser. Sem uma delas, eu não descobriria a outra, que me fez preparar um barco que seria o meu regugio. O barco que me refugiou.
Eram tantos os caminhos que me apareciam. Pareciam enormes corredores esperançosos pela passagem do barco que não parava vez alguma. Esses corredores sombrios eram forrados de paredes - as árvores verdes, sujas que se abraçavam no cimo, era dificil ver o céu escuro da noite.
As águas eram mantos infindáveis e inseguros que faziam tremer o pequeno barco. O bater das ondas, lembrava-me o rufar dos tambores que se aproximava.
Eis que percorrida toda a camada lacrimosa, uma nova imagem surgiu no meu olhar que naquele momento mágico reflectiu a beleza mais pura jamais encontrada.
O vento cortante converteu-se numa brisa amena que aconchegou o meu corpo gelado que mal sustentava a minha alma até ali desgostada. Já não via o céu tenebroso até então, nem as árvores que sem darem pela minha presença continuavam abraçadas, quebrando a ausência de calor. Naquele momento via o céu coberto de estrelas que me orleava. As estrelas, como olhos postos em mim, seguiam-me e, abrigavam-me numa atmosfera impenetrável. Vi-me cercada de árvores verdes e luminosas que me recebiam naquele espaço amplo que me devolveu a plenitude que eu buscava quando embarquei no barco ilusório.
Observadas de um ponto mais alto, as árvores formavam um amontoado de vida à disposição do Homem, pois a sua forma fofa lembrava um berço.
Ali, eu podia renascer, podia deitar-me no berço e sonhar para sempre. Ali, eu podia ouvir a dócil melodia que parecia ser tocada por entes puramente espirituais e deixar-me elevar por cada nota mais aguda que assombrava todo o mal.
Preparei o barco da ilusão e naveguei rumo à tranquilidade cedida pelo local que quase ninguém ousa alcançar. E lá voltarei, para testemunhar a paz que me envolveu e não mais me largou.
Ana Lúcia

IGNOTO DEO

Creio em Deus; a fé viva
De minha alma a ti se eleva.






És: - o que és não sei. Deriva
Meu ser do teu: luz... e treva,
Em que - indistintas! - se envolve
Este espírito agitado,
De ti vêm, a ti devolve.


O nada, a quem foi roubado
Pelo sopro criador
Tudo o mais, o há-de tragar.
Só vive do eterno ardor
O que está sempre a aspirar
Ao infinito donde veio.




Beleza és tu, luz és tu,
Verdade és tu só. Não creio
Senão em ti; o olho nú
Do Homem não vê a terra
Mais que a dúvida, a incerteza,
A forma que engana e erra.
Essência! a real beleza,
O puro amor - o prazer
Que não fatiga e não gasta...




Só por ti os pode ver
O que, inspirado, se afasta,
Ignoto Deo, das ronceiras,
Vulgares turbas: despidos
Das coisas vãs e grosseiras
Sua alma, razão, sentidos,
A ti se dão, em ti vida,
E por ti vida têm. Eu, consagrado


A teu altar, me prosto e a combatida
Existência, aqui ponho, aqui votado
Fica este livro - confissão sincera
Da alma que a ti voou e em ti só spera.





Almeida Garrett - Folhas Caídas